quinta-feira, 17 de maio de 2018

Fátima – Morrer e Renascer.

Aviso para texto muito longo.
Como já escrevi, tomei a decisão de ir a Fátima num impulso.
Confesso que estava nervosa porque seriam 4 dias a andar, 130 km de caminho, não sabia se ia chover, se faria sol se estaria preparada etc etc etc. Não obstante, a minha principal preocupação eram os meus joanetes. Sim, leram bem os meus joanetes. Sempre os tive aqui a falar comigo, mas nos últimos meses têm gritado comigo...Só de pensar em operações fico angustiada, tenho dores, mas tenho ignorado. Portanto, estava bastante preocupada, para além de nunca ter acampado, dormido em albergues ou pavilhões e por aí a fora. Em termos de preparação estava mais ou menos descansada, uma vez que para além das corridas e dos trails, umas semanas antes, comecei a fazer caminhadas de 8 a 10 km por dia para habituar o corpo ao movimento da caminhada.
Depois de várias idas à Decathlon, na véspera da viagem, já tinha tudo arranjado, desde vaselina a meias, muitos pares de meias, fiz um grande investimento em meias, spray para as dores agudas, Voltaren em pomada, saco-cama, colchão, roupas embaladinhas por dia em saquinhos individuais e enquanto revia tudo na minha cabeça, comecei a duvidar de tudo aquilo. Comecei a questionar-me, porquê? Porque optas por fazer isto quando podias ficar estes dias em casa com tua filha? Quanto mais pensava naquilo mais eu chamava-me de doida… Voltas e voltas e às 04:30 da manhã quando toca o despertador lá levantei a muito custo. Vaselina nos pezinhos, a meinha e o resto do equipamento como se fosse correr. Meus amigos, quando nos metemos nestas coisas não é para desistir e há que procurar o máximo conforto na roupa que usas. Na roupa optei pelo meu equipamento de corrida, meias, as que já conhecia da Decathlon, e que nunca me deixaram mal, e os meus ASICS.
 
Dia 1 - O início
Aqui começa a minha aprendizagem de pessoas e de mim mesma. Não podes ir para uma coisa destas e ficares na tua bolha, tens que sair, tens que dar abertura, tens que deixar todos os “jeitos” em casa.
Cheguei ao local de encontro e a minha amiga ainda não estava lá, portanto fiquei ali no limbo uns cinco minutos a ver as pessoas chegar. Aqui comecei a pensar, mas este pessoal trás cobertores e sacos de acampamento? Está-me a falhar alguma coisa Uma alma gentil la veio falar comigo e convidar para o café enquanto esperávamos pelas pessoas. Olhares curiosos porque claramente eu era uma das novatas. Já todos juntos e pontuais, às 05:50 entramos na Igreja para rezar o Terço, comecei a pensar “Embarcaste nisto agora vai com tudo”. Sou batizada, mas não sou católica praticante, portanto rezar o Terço é a modos, que um tanto ou quanto “não sei metade”. Às seis em ponto estávamos em marcha. Início, Bucelas até “mais além”. A verdade é que nem dei pelos primeiros 10 km, pessoas bem dispostas a pôr a conversa em dia. Comecei a ficar impressionada porque de 20 em 20 minutos lá estava o carro de apoio para águas, frutas e bolachas, o que queríamos mais? Fizemos uma paragem grande para o pequeno-almoço e depois fizemos cerca de mais uns 12 km para o almoço. Sempre com paragens pelo meio, uns mais devagar que os outros, mas espera-se sempre pelos que estão lá atrás, sempre! Chegando ao local de almoço, percebo que a comida está quase pronta porque são as pessoas da organização que cozinham. Começo a perceber o porquê das mantas Entramos numa especie de ringue, estende-se a mantinha e descalça-mo-nos para ver os estragos. Pés inchados, bolhas e bolhas, e inchaços… Refrescar os pézinhos, a enfermeira de serviço anda de mantinha em mantinha a ver os pés a perguntar se está tudo bem. Os meus joanetes impecáveis, mas passa vaselina e pôr uma meinha nova. Uns optam por ficar de chinelos, mas cheguei à conclusão que gosto de pôr o creme e calçar logo a meia, isto sou eu, uma vez que não tinha bolhas.
Estava com tanta fome que o rancho caiu-me que nem ginja… Havia outras opções para quem não come rancho, mas não, “moi”, nem queria saber. E ainda bem que o fiz, porque o que andámos até ao ponto de dormida foi outros 22 km à chuva! E com a chuva a moral do grupo desvanece, só andamos em silêncio, uns com chapéu outros com capas, eu não levei nada disto, então só ia a pensar que estava a ficar ensopada nas bochechas do rabo e que não queria assar… Azambuja, paragem para farmácias e chinês. Uma fofinha que não me conhecia de lado nenhum comprou-me uma capinha de plástico que me fez muito jeito até ao final da viagem. Foi ao chinês e comprou uma para ela e uma para mim. Não me conhecia, fiquei-lhe grata, novinha, vinha da Suíça agradecer o fato de ter tentado muitas vezes engravidar e depois longos anos de choros e abortos, lá conseguiu. Fiquei-lhe grata e de certo modo também foi a minha companheira até ao fim da viagem. andamos mais uns quilómetros e chegamos ao local da dormida. Tínhamos feito 42 km nesse dia, só queríamos chegar, tomar banho e descansar.
Foi a minha noite mais difícil, a primeira. Chegar e perceber o que estavam os restantes a fazer. Encher o colchão, saco-cama para cima e toca de ir ao banho. Fila para banho e água fria… Foi um mau momento para mim, muito mau mesmo Não consegui e quando saí, alguém perguntou-me se estava bem ao qual respondi “Vai passar...”. jantamos, ainda gelada e toca a rezar novamente GOD! Finalmente na cama não consegui aquecer, percebi outra vez o porquê da mantinha, portanto dormi muito pouco. Ouvi de tudo, ressonos, tosses, peidos, para além dos cheiros a voltarens e cholés… Noite difícil...
 
Dia 2 - As maleitas
Às 05:30, levantar, desencher o colchão, arrumar o saco-cama, colocar tudo no saco, pôr na carrinha, pão, café e rezar...
Andas, andas, andas, andas, andas e ao fim de 12 km comecei a sentir a canela esquerda. Eu tenho uma dorzinha crônica na anca do lado direito, então compenso o peso todo para o lado esquerdo, mais retenção de líquidos… A dorzinha passou para os pés inchados, que rapidamente passou com o descanço à hora de almoço. Andas, andas, andas e chuva, chuva e chuva, tira a capa, põe a capa para depois ir tomar banho a um Lar, porque no sítio onde vais jantar e dormir não tem chuveiros O mesmo ritual, chegas e enches colchão. Saco-cama abrir rapidamente, da mala tirar a roupa, colocares num carro e cinco minutos estás no lar a tomar banho… Again, demasiado para mim… Tomas banho rapidamente para depois ires à missa, sim, missa, outra vez.. Rezar o Terço, cânticos, missa e Terço outra vez… Finalmente jantar. Dores, muitas dores, na canela, nas pernas, os pés inchados, mas não me posso queixar, bolhas em sangue nem vê-las...
 
Dia 3 - O dia da reflexão
O mesmo ritual de sempre. Às 05:30, levantar, desencher o colchão, arrumar o saco-cama, colocar tudo no saco, pôr na carrinha, pão, café e rezar de mão dadas, mais cânticos...
O terceiro dia era o que na minha cabeça seria o mais difícil e foi. Já com mais de cento e poucos quilómetros nas pernas, as mazelas começam a massacrar… E a dor sempre presente é do caraças. A canela estava cada vez mais inchada e tive que passar pela farmácia e comprar os Voltaren em comprimidos… Foi perfeito,  passado 45 minutos já não sentia dor. Que besta, no primeiro dia quando vi gente junto a farmácia era o que devia ter comprado logo, ou seja, viva aodrunfos. Comecei a sentir as pernas pesadíssimas e cada vez que parávamos fazia logo uns alongamentos, se não fossem estes últimos eu não teria conseguido fazer tanto quilómetro.
Neste dia andamos muito em filinha e tivemos uns quantos momentos sozinhos. Dá para “voltares para dentro” umas quantas vezes, meditares, pensares na vida, para depois voltares às risadas com os teus companheiros desses dias, dares força quando vês alguém a esmorecer ou a dor na cara dessas pessoas. Foram dias de companheirismo, de fraternidade, de apoio. Grata por isso, muito grata. Antes de chegar a Minde (localidade de dormida e antes de Fátima), temos uma subida muito acentuada. Então fizemos um exercício, escolhiamos um par e teríamos que subir lado a lado com esse par,com o mesmo passo sem falar durante dez minutos. Seria um momento de introspecção. Bom este exercício pratico-o quando estou sozinha a correr ou nos trails. Quando estou em sofrimento e o trail nunca mais acaba Esse exercício fi-lo no Trail da Archeira, duríssimo em que chorei muito durante dez minutos depois do senhor da organização nos ter dito que faltam 5 km para acabar, ia no quilómetro 19, andei, andei e andei a chorar, depois continuei. Pelo que percebi foi a primeira vez que este grupo fez este exercício e vi na cara das pessoas, aquando da informação, alguma preocupação dos que já sabiam como era a subida...
Começamos a subida e em silêncio fomos, durante 10 minutos sempre a subir, vou ser sincera, não me custou mas olhava para o canto do olho para o meu par e ele estava aflito, reduzi o passo, era esse o propósito, no silêncio, apoiar. Quando chegamos claramente havia pessoas muito ofegantes, mas muito emocionadas em lágrimas, porque foi extenuante a derradeira prova de quem nós somos e do que somos feitos. A explicação foi que o exercício era para sair da nossa zona de conforto e encontrarmos-nos. Morrer para depois Renascer… Era a frase, achei engraçado porque é um termo que utilizo muito. É um termo que acontece em determinadas fases da nossa vida...Encerramos um ciclo para começar outro, fez todo o sentido, depois disto foi só descer até ao local de dormida. Foi libertador.
Depois chegar e começar o ritual do costume. Era a última noite… E nada melhor para acabar com um bacalhau à Brás, suculento e um arroz doce morninho para nos aconchegar a Alma. A organização lá foi informando em modo de desculpa que recebem todos os anos pedidos para a caminhada e que não dá para todos. A logística já é bastante difícil para as 50 pessoas e que não fiquemos chateados se por ventura para o ano não der… Depois disso aconteceram muitas coisas engraçadas e partidas, porque há sempre um gajo que nos faz rir, mas apaguei de cansaço..
 
Dia 4 - A chegada
Neste dia só andamos uns 18 km, sim, chegamos ao ponto de dizer, só18 km… Aqui, nesta última caminhada fiz questão de andar no meio do grupo e mais devagar para estar mais junto, para a risada e galhofa. A um quilómetro recebemos a diretriz de entrarmos aos pares no recinto, calmamente, em silêncio e a família ir se juntando a nós. Naquele último quilómetro emocionei-me, pela chegada, pelo alívio, por ter cumprido o meu caminho, olhávamos uns para os outros e todos estávamos em sintonia. Emocionei-me q.b..
Foi chegar, rezar e almoçar todos juntos com a família.
Foi uma experiência que guardo bem no meu coração, foi duríssima, mas cresci um bocadinho. Todos têm uma história para contar, mas não com cargas negativas, éramos umas 50 pessoas, todos diferentes com propósitos diferentes, ninguém julga.
Fiquei impressionada com a logística disto tudo. Uma coisa é andares mais de 30 km por dia e chegares, só teres que preocupar-te em tomar banho e comer.. Nao podemos esquecer que há o outro lado, o lado de quando te levantas, tens pão fresco, café, leite, quando chegas para almoçar é só sentar à mesa, tachão enorme, levantam a mesa e quando saímos eles ficam a arrumar, a lavar a loiça, para quando chegarmos para jantar estar tudo pronto. É inacreditável, porque nos levantamos às cinco e meia da manhã e já esta tudo pronto! Descascar batatas para cinquenta pessoas, a custo zero, é preciso ter um grande coração. E a minha renasceu no ser humano. Há pessoas boas.
Faria tudo de novo, faria e farei...Com o olho em Santiago...
No dia seguinte, no trabalho estava eu ainda com pé inchado, mas muito calma e com fé no ser humano.
 Obrigada Fátima.
 

É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós.”
José Saramago
 
 
 
 
 
 


2 comentários:

  1. Bom texto e descrição Fátima!...Adorei que tivesse posto em relevo a frase de Allan Kardec !!

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    1. Obrigada. A frase achei mais que apropriada. Proguedir, sempre!

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