Aviso para texto muito
longo.
Como já escrevi, tomei a
decisão de ir a Fátima num impulso.
Confesso que estava
nervosa porque seriam 4 dias a andar,
130 km de caminho, não sabia se ia chover, se faria
sol se estaria preparada etc etc etc. Não obstante, a minha principal preocupação
eram os meus joanetes. Sim, leram bem os meus joanetes. Sempre os
tive aqui a falar comigo, mas nos últimos meses têm gritado comigo...Só de
pensar em operações fico angustiada, tenho dores, mas tenho ignorado. Portanto, estava bastante preocupada, para
além de nunca ter acampado, dormido em albergues ou pavilhões e por aí a fora. Em termos de
preparação estava mais ou menos descansada, uma vez que para além das corridas e dos trails, umas semanas antes, comecei a
fazer caminhadas de 8 a 10 km por
dia para habituar o corpo ao movimento da caminhada.
Depois de várias idas
à Decathlon,
na véspera da viagem, já tinha tudo arranjado, desde vaselina a meias, muitos
pares de meias, fiz um grande investimento em
meias, spray para as dores agudas, Voltaren em
pomada, saco-cama, colchão,
roupas embaladinhas por dia em saquinhos individuais e enquanto
revia tudo na minha cabeça, comecei a duvidar
de tudo aquilo. Comecei a questionar-me, porquê? Porque optas por fazer isto quando podias ficar estes dias em
casa com tua filha? Quanto mais pensava
naquilo mais eu chamava-me de doida…
Voltas e voltas e às 04:30 da manhã quando toca o
despertador lá levantei a muito custo.
Vaselina nos pezinhos, a meinha e o resto
do equipamento como se fosse correr. Meus amigos, quando nos metemos nestas
coisas não é para desistir e há que procurar o máximo conforto na roupa que
usas. Na roupa optei pelo meu equipamento de
corrida, meias, as que já conhecia da Decathlon, e
que nunca me deixaram mal, e os meus ASICS.
Dia 1 - O início
Aqui
começa a minha aprendizagem de pessoas e de
mim mesma. Não podes ir para uma coisa destas e ficares na tua bolha,
tens que sair, tens que dar abertura, tens que deixar
todos os “jeitos” em casa.
Cheguei ao local de encontro e
a minha amiga ainda não estava lá, portanto fiquei ali no limbo uns cinco minutos a ver as pessoas chegar. Aqui comecei a pensar, mas este pessoal trás cobertores e sacos
de acampamento? Está-me a falhar alguma
coisa… Uma alma gentil la veio falar comigo e
convidar para o café enquanto esperávamos pelas pessoas. Olhares curiosos porque
claramente eu era uma das novatas. Já todos juntos e pontuais, às 05:50 entramos na
Igreja para rezar o Terço, comecei a pensar “Embarcaste nisto agora vai com tudo”.
Sou batizada, mas não sou católica praticante,
portanto rezar o Terço é a modos, que um tanto ou quanto “não sei metade”. Às seis em ponto estávamos
em marcha. Início, Bucelas até “mais
além”. A verdade é que nem dei pelos primeiros 10 km, pessoas bem dispostas a pôr a conversa em dia. Comecei a ficar
impressionada porque de 20 em 20 minutos lá
estava o carro de apoio para águas, frutas e
bolachas, o que queríamos mais? Fizemos uma paragem grande para o pequeno-almoço e depois fizemos cerca de mais uns 12 km para o almoço. Sempre
com paragens pelo meio, uns mais devagar que os outros, mas espera-se sempre pelos que estão lá atrás, sempre!
Chegando ao local de almoço, percebo que a comida
está quase pronta porque são as pessoas da organização que cozinham. Começo a perceber o porquê das mantas… Entramos
numa especie de ringue, estende-se a mantinha e descalça-mo-nos para
ver os estragos. Pés inchados, bolhas e
bolhas, e inchaços… Refrescar os pézinhos, a enfermeira de serviço
anda de mantinha em mantinha a ver os pés a perguntar se está tudo bem. Os meus joanetes impecáveis,
mas passa vaselina e pôr
uma meinha nova. Uns optam por ficar
de chinelos, mas cheguei à conclusão que gosto de pôr
o creme e calçar logo a meia, isto sou eu, uma
vez que não tinha bolhas.
Estava com
tanta fome que o rancho caiu-me que nem ginja… Havia outras opções para quem
não come rancho, mas não, “moi”, nem queria
saber. E ainda bem que o fiz, porque o que
andámos até ao ponto de dormida foi outros 22 km à chuva! E com a chuva a
moral do grupo desvanece, só andamos em silêncio, uns com chapéu outros com capas, eu não levei nada disto,
então só ia a pensar que estava a ficar ensopada nas bochechas do rabo e que
não queria assar… Azambuja, paragem para farmácias e chinês. Uma fofinha que
não me conhecia de lado nenhum comprou-me uma capinha de plástico que me fez
muito jeito até ao final da viagem. Foi ao
chinês e comprou uma para ela e uma para mim.
Não me conhecia, fiquei-lhe grata, novinha,
vinha da Suíça agradecer o fato de ter tentado muitas
vezes engravidar e depois longos anos de choros e abortos, lá conseguiu.
Fiquei-lhe grata e de certo modo também foi a minha
companheira até ao fim da viagem. Lá andamos
mais uns quilómetros e chegamos ao local da dormida. Tínhamos feito 42 km nesse dia, só queríamos
chegar, tomar banho e descansar.
Foi a minha noite mais
difícil, a primeira. Chegar e
perceber o que estavam os restantes a fazer. Encher o
colchão, saco-cama para cima e toca de ir ao
banho. Fila para banho e água fria… Foi um mau momento
para mim, muito mau mesmo… Não consegui e quando saí,
alguém perguntou-me se estava bem ao qual
respondi “Vai passar...”. Lá jantamos, ainda gelada e
toca a rezar novamente… GOD! Finalmente na cama não consegui aquecer, percebi outra vez o
porquê da mantinha, portanto dormi muito pouco. Ouvi de tudo, ressonos,
tosses, peidos, para além dos cheiros
a voltarens e cholés… Noite
difícil...
Dia 2 - As maleitas
Às 05:30, levantar, desencher o
colchão, arrumar o saco-cama, colocar tudo no
saco, pôr na carrinha, pão, café e rezar...
Andas, andas, andas, andas,
andas e ao fim de 12 km comecei a sentir a canela
esquerda. Eu tenho uma dorzinha crônica na anca do lado direito, então
compenso o peso todo para o lado esquerdo, mais
retenção de líquidos… A dorzinha passou
para os pés inchados, que rapidamente passou com o descanço à hora de almoço. Andas,
andas, andas e chuva, chuva e chuva, tira a
capa, põe a capa
para depois ir tomar banho a um Lar, porque no sítio onde vais jantar e dormir não tem chuveiros… O mesmo ritual,
chegas e enches colchão. Saco-cama abrir rapidamente, da
mala tirar a roupa, colocares num carro e cinco minutos estás
no lar a tomar banho… Again, demasiado para
mim… Tomas banho rapidamente para depois ires à
missa, sim, missa, outra vez.. Rezar o Terço, cânticos, missa e Terço outra vez…
Finalmente jantar. Dores, muitas dores, na canela,
nas pernas, os pés inchados, mas não me posso
queixar, bolhas em sangue nem vê-las...
Dia 3 - O dia da reflexão
O mesmo ritual de sempre. Às 05:30, levantar,
desencher o colchão, arrumar o saco-cama, colocar tudo no saco, pôr na
carrinha, pão, café e rezar de mão dadas, mais cânticos...
O terceiro dia era o que
na minha cabeça seria o mais difícil e foi.
Já com mais de
cento e poucos quilómetros nas pernas, as mazelas começam a massacrar… E a dor sempre presente é do caraças. A canela estava cada
vez mais inchada e tive que passar pela farmácia e comprar os Voltaren em comprimidos… Foi perfeito, passado
45 minutos já não sentia dor. Que
besta, no primeiro dia quando vi gente junto a
farmácia era o que devia ter comprado logo, ou
seja, viva aos drunfos. Comecei a sentir as pernas pesadíssimas e cada vez
que parávamos fazia logo uns alongamentos,
se não fossem estes últimos eu não teria conseguido
fazer tanto quilómetro.
Neste dia andamos muito
em filinha e tivemos uns quantos momentos sozinhos. Dá para “voltares para dentro”
umas quantas vezes, meditares, pensares na
vida, para depois voltares às risadas com os teus companheiros desses dias, dares força
quando vês alguém a esmorecer ou a dor na cara dessas pessoas. Foram dias de companheirismo,
de fraternidade, de apoio. Grata por isso,
muito grata. Antes de chegar
a Minde (localidade de dormida e antes de Fátima), temos uma subida muito acentuada. Então fizemos um exercício, escolhiamos
um par e teríamos que subir lado a lado com esse
par,com o mesmo passo sem falar durante dez minutos. Seria um momento de introspecção. Bom este exercício pratico-o
quando estou sozinha a correr ou nos trails. Quando estou em sofrimento e o trail nunca mais acaba
Esse exercício fi-lo no Trail da Archeira, duríssimo em que chorei muito durante dez minutos depois do
senhor da organização nos ter dito que faltam 5 km para acabar, ia no
quilómetro 19,
andei, andei e andei a chorar, depois continuei.
Pelo que percebi foi a primeira vez que este grupo
fez este exercício e vi na cara das pessoas,
aquando da informação, alguma preocupação dos que já sabiam como era a subida...
Começamos
a subida e em silêncio lá fomos, durante 10 minutos
sempre a subir, vou ser sincera, não me custou mas olhava para o canto do olho para o meu par e ele estava
aflito, reduzi o passo, era esse o propósito,
no silêncio, apoiar. Quando chegamos claramente havia pessoas muito ofegantes,
mas muito emocionadas em lágrimas, porque foi
extenuante a derradeira prova de quem nós somos e do que somos feitos. A explicação foi que o exercício era para sair da nossa zona
de conforto e encontrarmos-nos. Morrer para
depois Renascer… Era a frase, achei engraçado porque é um termo que utilizo muito. É um termo que acontece em determinadas fases da nossa
vida...Encerramos um ciclo para começar outro, fez todo o sentido, depois disto foi só
descer até ao local de dormida. Foi
libertador.
Depois chegar e começar o ritual do costume.
Era a última noite… E nada melhor para acabar com um bacalhau à Brás, suculento e um arroz doce morninho para
nos aconchegar a Alma. A organização lá foi
informando em modo de desculpa que recebem
todos os anos pedidos para a caminhada e que não dá para todos. A logística já é bastante difícil
para as 50 pessoas e que não fiquemos chateados se por ventura para o ano não der…
Depois disso aconteceram muitas coisas engraçadas e
partidas, porque há sempre um gajo que nos faz rir, mas apaguei de cansaço..
Dia 4 - A chegada
Neste dia
só andamos uns 18 km, sim, chegamos ao
ponto de dizer, só18 km… Aqui, nesta última caminhada fiz questão de andar no meio do grupo e mais
devagar para estar mais junto, para a risada e galhofa. A um quilómetro recebemos a
diretriz de entrarmos aos pares no recinto, calmamente, em silêncio e a família ir se juntando a nós. Naquele último quilómetro emocionei-me, pela chegada,
pelo alívio, por ter cumprido o meu caminho,
olhávamos uns para os outros e todos estávamos
em sintonia. Emocionei-me q.b..
Foi chegar, rezar e almoçar todos juntos com
a família.
Foi uma experiência que
guardo bem no meu coração, foi duríssima,
mas cresci um bocadinho. Todos têm uma história para contar, mas não com
cargas negativas, éramos umas 50 pessoas, todos diferentes com propósitos
diferentes, ninguém julga.
Fiquei impressionada com
a logística disto tudo. Uma coisa
é andares mais de 30 km por dia e chegares, só
teres que preocupar-te em tomar banho e comer.. Nao podemos esquecer que
há o outro lado, o
lado de quando te levantas, tens pão fresco,
café, leite, quando chegas para almoçar é só sentar à mesa, tachão enorme, levantam a mesa e quando saímos eles ficam
a arrumar, a lavar a loiça, para quando
chegarmos para jantar estar tudo pronto. É
inacreditável, porque nos levantamos às cinco e meia da manhã e
já esta tudo pronto! Descascar batatas para
cinquenta pessoas, a custo zero, é preciso ter
um grande coração. E a minha fé renasceu no ser humano. Há pessoas boas.
Faria tudo
de novo, faria e farei...Com o olho em
Santiago...
No dia seguinte, no trabalho estava eu ainda com
pé inchado, mas muito calma e com fé no ser humano.
Bom texto e descrição Fátima!...Adorei que tivesse posto em relevo a frase de Allan Kardec !!
ResponderEliminarObrigada. A frase achei mais que apropriada. Proguedir, sempre!
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